Responsável por um mercado que vale bilhões, a cannabis está cada vez mais presente na vida dos brasileiros. Os usos medicinal e industrial já são legalizados no Brasil, o que nos permite comprar medicamentos e roupas dentro do país. Apesar disso, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) insiste em afirmar que signos relacionados à cannabis ofendem a moral e os bons costumes — o que impede seu registro enquanto marca.
A cannabis passa por uma era de ouro nas Américas. Em 2013 o Uruguai legalizou o uso recreativo e foi um caminho sem volta. De lá para cá, a planta foi legalizada em Chile, Paraguai, Argentina, Colômbia, México e, mais importante, nos Estados Unidos. Em 2018, o governo conservador de Donald Trump, por meio da articulação de um senador republicano, também conservador, sancionou o Farm Bill de 2018, legalizando a nível federal o cânhamo nos EUA. A partir daí, o mundo retomou sua atenção para a planta.
No Brasil, desde 2015 a Anvisa avança na regulação da cannabis medicinal. Graças a esses avanços, hoje os brasileiros podem importar medicamentos com CBD e THC ou, ainda, comprar esses produtos nas farmácias nacionais. Ao mesmo tempo, os tecidos feitos com fibras de cânhamo nunca foram proibidos e várias marcas, como Levi’s, Osklen, Reserva, Adidas e Hempstee, já os comercializam sem problemas.
Contudo, mesmo com a legalização da cannabis medicinal e do cânhamo industrial, o INPI insiste em afirmar que marcas que usam expressões como “cânhamo” ofendem a moral ou bons costumes.
O primeiro paradoxo que surge é o seguinte: como é possível que determinados produtos sejam, ao mesmo tempo, legais e imorais? Ainda, imorais não apenas como efeito retórico, extrajurídico. Imorais gerando a ilegalidade de um ato perante o Estado.
Esse foi o caso do pedido de registro nº 908082029, da marca TheHemp Company, que teve o seu registro negado com a seguinte fundamentação:
“A marca reproduz expressão equivalente em português a “companhia do cânhamo (maconha)”, irregistrável de acordo com o inciso III do Art. 124 da LPI. Art. 124 – Não são registráveis como marca: III – expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal contrário à moral e aos bons costumes ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas ou atente contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração”.
Enquanto conceitos jurídicos, “moral” e “bons costumes” são vagos e com grande carga conotativa, sendo difícil delimitar, a priori, o que eles descrevem. Contudo, com o processo de legalização da cannabis no Brasil, com sua aplicação no tratamento de doenças refratárias como a epilepsia infantil e seu potencial para a sustentabilidade, é irreal afirmar que esses termos sejam contrários à moral e aos bons costumes. Afirmar que um produto legal, tributado, que salva vidas e é sustentável é imoral gera um ônus argumentativo ao INPI. E esse ônus não foi preenchido.
Ao mesmo tempo, temos um segundo paradoxo na atuação do INPI, que é a incoerência entre registros diferentes: se esse elemento nominativo é imoral, por que o INPI permite alguns registros de marcas e nega outros na mesma condição?
É o caso do processo nº 905829638, da marca mista Cânhamo Cânhamo, cujo elemento visual é a folha da cannabis. O processo foi aprovado sem a necessidade de recurso administrativo em outubro de 2015. Já a marca Planet Hemp, referente ao processo nº 820243361, foi deferida após recurso administrativo.
O tratamento diferente a esses casos, que se enquadram na mesma categoria jurídica, excede o que poderia ser considerado como discricionariedade — ainda que esta fosse aplicável à concessão de registros de marcas — e configura clara arbitrariedade.
Dessa forma, temos dois problemas: uma interpretação semântica anacrônica, que ignora o estado de coisas nacional, e, ao mesmo tempo, uma conduta incoerente do INPI, que em alguns casos trata o cânhamo como imoral e, em outros, não.
Para o bom funcionamento da nossa economia, a aplicação das regras pela Administração precisa ser, ao mesmo tempo, previsível e racional. Caso contrário, o Brasil permanecerá em um ciclo de atraso econômico criado pelos próprios agentes responsáveis pelo seu desenvolvimento.
Rafael Arcuri é advogado, diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em Direito Regulatório, doutorando e mestre em Direito e Políticas Públicas e membro da comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.
Henrique Coelho é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto, sócio no escritório AFCTF Advogados, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp, pós-graduado em Direito Público Global pela Universidad de Castilla – La Mancha (Espanha), doutorando e mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e diretor jurídico na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC).
Marcelo De Vita Grecco é sócio-fundador e CMO da The Green Hub. Formado em administração de empresas em Boston, Massachusetts, co-fundador da BRA Holding, participou do processo de criação e desenvolvimento das startups The Green Hub, CEC e Anella. Exerceu a função de CEO do Centro de Excelência Canabinoide, e atualmente faz frente à atuação como palestrante, sendo referência no assunto sobre o mercado da indústria da Cannabis.